#8 | palavra puxa saudade
"Como pode o tempo deixar um pedaço tão pequeno de mundo intacto?"
Alô, pensante! Dawton aqui.
Há algumas semanas, tive de ir à agência bancária em que abri minha primeira conta corrente, 10 anos atrás. Ela fica a dois quarteirões do campus da Universidade Estadual do Ceará, onde cursei graduação e mestrado. A ideia de visitar o lugar foi irresistível e, como resultado, trouxe uma crônica para casa, a mesma que compartilho com você logo abaixo, em texto, mas também acima, em áudio. Você também pode conferir a última edição em que fui crônico por aqui.
O tempo, sempre ele.
A dois quarteirões e 10 anos da porta da Universidade Estadual do Ceará para fora, eu era um adulto, com problemas de adulto, com dores de adulto, com dúvidas de adulto. No banco em que eu mesmo abrira a primeira conta corrente da vida, o primeiro passo de um dos grandes capítulos de uma vida aos quase 30 anos.
Nada disso era importante. Nenhuma das noites em claro angustiado com a dúvida "carro ou casa?", nenhuma das declarações de imposto de renda, nenhum dos planejamentos para o 13º salário, nada disso me fazia adulto ali: das portas da universidade em que vivi tanta juventude para dentro. Ali, voltei a ter 17 anos, curioso como era, tímido como era, amado como era. O tempo não passa na estadual, como eu mesmo já tinha dito numa das primeiras crônicas dedicadas ao primeiro amor.
O campus estava em reforma, como quando cheguei, como quando parti. Era hora do almoço e os almoços, ainda vendidos em quentinhas, estavam amontoados na cantina, lugar que substituiu o refeitório que seria reformado, ampliado, modernizado. Os jovens ou nunca se conformam ou nunca perdem a esperança, ou os dois. Minha versão adulta e anacrônica olhava tudo como quem entendia a letargia de quem já perdeu a fé na batalha. Minha versão adulta e anacrônica talvez tivesse pouca paciência para minha versão de tantos anos antes, que encarava o prédio daquela instituição como um conjunto rebelde de novas possibilidades de mudar o mundo. Tudo era muito importante. Tudo era muito urgente.
Por um momento, ao pensar em minha versão adolescente saindo da concentração de uma passeata grevista, ali, naquele pátio parado no tempo, pude pensar, num lapso, em todos os adolescentes que já conheci durante anos de sala de aula no ensino médio. Nunca fui a favor de relativizar as confissões juvenis de meus alunos ou de reduzi-las a meros dramas imaturos, mas não é possível dizer que tenho a mesma empatia que tive no primeiro ano de docência. E isso, por mais difícil que seja de admitir, diz mais sobre mim e minha passagem pelo tempo, do que sobre os alunos e suas aflições.
A verdade é que encarar o prédio da estadual foi me lembrar do jovem que fui, dos dramas que tive, das urgências e das certezas. E quantas certezas! A maturidade compreende que transformações levam mais tempo do que nossas versões juvenis podem admitir e, descuidado, pensei que minha paciência de hoje ser menor que a de antes talvez fosse a revelação freudiana de um desejo muito interior de experimentar de novo o tempo em que a luta pela reforma do refeitório do campus era minha hercúlea contribuição política à sociedade. O tempo em que conseguir uma entrevista com os candidatos à reitoria da universidade para o blog do meu curso era um dos feitos jornalísticos mais promissores que eu podia imaginar.
Ter saudade dessa lente de aumento parece ser, então, uma das várias fases desse novo tempo, o de ser gente grande. Haverá talvez um instante em que até mesmo essa saudade se perderá no tempo e reste, para depois da perda completa de paciência com meu reflexo jovem no espelho da vida, apenas a indiferença de quem encara o presente sem tanto afeto pelo passado. Ou não, também, já que, ao mesmo tempo, somos as criaturas que se emocionam, no Tiktok, com um filtro que rejuvenesce, como se doesse pensar no que faríamos se tivéssemos a chance de voltar. Mas não uma dor aguda, dolorida mesmo, sabe?! Mas aquela mais amena, aquela que quase faz bem sentir.
Ao mesmo tempo, somos a criaturas que tentam se proteger da frustração que existe em não haver como reconstruir o tempo e se livrar ou amenizar a saudade. Daí os filtros que rejuvenescem, as turnês de bandas que há muito não se gostam, as distopias e seus futuros apocalípticos, os filmes e as séries saudosistas que mostram como mudar o passado seria uma ruína. Nossa inconformidade com o tempo adormece no frisson do cotidiano tal como a respiração ou a linguagem, sobre o que não pensamos consciente e criticamente muitas vezes ao dia. Sorte dos cronistas, esses inconformados conscientes.
Andando pelos pátios da estadual, cumprimentei antigos conhecidos, olhei as árvores, nenhum deles parecia ter envelhecido. Como pode o tempo deixar um pedaço tão pequeno de mundo intacto? Um pouco mais adentro, uma das secretárias do curso que me formou e que ajudei a formar me recebe como se tivesse me visto ontem ou há menos tempo ainda: oi, Dawtim... Tá vendo a confusão? Eu tenho 17 bancas pra ajeitar! Eu não aguento mais isso...
Engoli o choro. Não porque não estivesse emocionado ou porque a emoção tivesse sido sustada, mas porque, ali, para eles, o tempo realmente não tivera passado. Chorar por quê, então? Saudade de quê? Abracei-a à revelia de seu espanto, o espanto de quem estranha abraços fora de época. Os pelos brancos de sua sobrancelha sendo a única denúncia do tempo. Engoli o desânimo íntimo de não ter sido recebido com reclamações do tipo “esqueceu a gente” ou com protestos de saudade como aquela que me acelerou o coração, que me molhou os olhos, aceitando que cada um sente saudade ao seu modo, entendendo minha própria insegurança em admitir emoção, vulnerabilidade.
Como pode o tempo deixar um pedaço tão pequeno de mundo intacto?
Senti algo lendo suas palavras, não sei bem se foi nostalgia do tempo de outrora que tanto se assemelha ao seu; ou se uma melancolia pelo tempo de outrora que não é mais pertencente a mim como gostaria.