#11 | Um Titanic sem comportas
Quanto de você já foi comprometido nas fragmentações que você faz por medo de se perder inteiramente?
Morei na mesma casa por 18 anos sem nunca ter pensado sobre as memórias que estão fixadas em suas paredes, como as marcas de prego que já penduraram decorações de que minha mãe desistiu ao longo do tempo. Mesmo sem reformas desde muitos anos, a casa está bem longe de se parecer com o que era em sua primeira década. Símbolo material da separação de meus pais, ela representou uma maneira nada sutil e bastante tóxica de meu pai demonstrar o controle que exercia sobre a mulher que dizia amar. Pesado, né?! Esse vai ser o tom de hoje, mas vou poupar você dessa incursão freudiana por enquanto. Afinal, nos falta intimidade.
A casa de quatro cômodos foi se expandindo conforme os momentos de trégua entre meus pais aconteciam, de modo que ela e suas marcas também contam grande parte da minha história, a história de alguém cujas boas lembranças se perderam no tempo sob a pressão das memórias mais sombrias que fazem cafuné em tantos de meus traumas. Como dependo de quem dividiu a vida comigo em diversos momentos para me lembrar deles minimamente, há poucas semanas, sentado na garagem da casa que hoje é apenas de minha mãe, com sua companhia, tentei convidá-la a se lembrar de como a casa era, de como se transformou, de um pouco do que já foi vivido ali.
Enquanto eu performava no ar como quem redesenha as várias fases da casa, desde o jardim que deu lugar a um cômodo sem uso até o orelhão transferido três vezes de lugar, até estar onde está hoje, sem função prática, mas com uma enorme função histórica, minha mãe ia velozmente fechando as janelas da alma e se escondendo dentro de si como quem escolhesse com todas as forças que tivesse não pensar no passado. Suas respostas lacônicas e seu olhar distante iam colidindo com meu entusiasmo de realmente lembrar alguns momentos, embora todos tensos, e o passado foi se tornando palpável, conscientemente sufocante para ela; inconscientemente inebriante para mim. Reconheci o peso da tentativa e lhe dei trégua, como quem segura a si mesmo com os dois braços, olha para quem está logo ali e se pergunta o que a vida fez com aquele outro ser humano.
Sempre achei que um de nossos maiores problemas, enquanto conjunto de indivíduos que convivem, é não se perguntar o que a vida fez com aquele outro ser humano. A mulher a minha frente reagiu como um Titanic que colide não gravemente com um grande bloco de gelo e baixa rapidamente suas comportas para evitar que a água que entra pelo rasgo da batida lhe afunde. Foi justamente a metáfora que usei na última sessão de terapia (porque, ei, estou fazendo terapia desde o começo do mês!) para me referir a mim mesmo: alguém sempre preparado para baixar as comportas, perder algumas partes e preservar o todo. “A que custo?”, perguntou o analista, “quanto de você já foi comprometido nas fragmentações que você faz por medo de se perder inteiramente?”. Silêncio no divã. A fragmentação é uma das questões que me levou à análise recentemente, mas, de novo, nos falta intimidade, de modo que esta ainda é uma ponte entre o que comecei dizendo a você e o que quero realmente dizer.
E o que quero realmente dizer está sendo dito na manhã da noite que virei vendo a última temporada de Sex Education. Cê acompanhou? (A ponte continua) Para mim, a última temporada mostrou que a série realmente foi sobre se conectar e sobre aceitar o diálogo, mesmo em suas versões mais difíceis, e não necessariamente sobre tabus sexuais. Os arcos das personagens guardam um ponto em comum que me comoveu por representar algo que tenho buscado: todas elas se encontraram no processo de aprender a acessar o que sentiam e de compartilhar esses sentimentos entre si, sempre que possível e mesmo com o medo tipicamente humano de serem julgadas, rejeitadas e/ou abandonadas. Vários Titanics aprendendo a não fecharem suas comportas por medo de afundarem inteiramente.
Eis que, na última sessão, foi minha vez de confrontar o analista e perguntar qual era sua teoria para eu ter escolhido estar ali, a sua frente. “Se eu sei que o processo de análise é revolver feridas que estão ‘recalcadas’ em nome da preservação do meu ‘consciente’, o que me traria até aqui, sabendo que este processo tende justamente a romper esse dique, essa barragem, a emperrar as comportas de meu Titanic?”. Ele foi certeiro. “O fato de você entender que este processo não acontece repentinamente. O fato de você reconhecer que já há rachaduras na barragem que você construiu - bem forte, por sinal - e que é justamente a análise que o ajudará a reparar essas rachaduras e permitir que o fluxo retido alivie a pressão de modo ‘seguro’”.
Minha mãe talvez tenha consciência do que foge e porque foge assim como talvez todos nós, em maior ou menor medida, tenhamos. Ou, na verdade, nenhum de nós tenha ainda qualquer noção do que pode ser acessado, conquistado ou perdido justamente pelo e no diálogo, pela e na comunicação explícita e honesta sobre nossos sentimentos, medos, pulsões, dúvidas. Ou haja um ponto no meio desses dois extremos, o que é mais provável, em que todos nós estamos aprendendo a falar, a reparar as rachaduras de nossas represas para que a pressão não nos exploda completamente, aprendendo que fechar as comportas do navio não repara o rasgo, mas pode, inclusive, nos fazer afundar mais rapidamente. Aprendendo a aceitar a pesada dúvida sobre quanto tempo podemos deixar de perder com o que não queremos conseguindo comunicar o que realmente desejamos.
🗣️ Tudo o que eu diria se não fosse demitido
| Relatos anônimos de situações profissionais nada profissionais
Recentemente, postei um story de desabafo em que disse literalmente “cada vez mais próximo de lançar um livro chamado “Tudo o que eu diria se não fosse demitido”. A reação foi surpreendente. Muitas pessoas levaram a “piada” a sério como se aquele também fosse desabafo delas e muitos relatos profissionais absurdos chegaram a minha caixa de mensagens. É bem provável que toda categoria profissional tenha seus próprios absurdos para contar, mas a docência deve oferecer algumas das histórias mais bizarras. Pensando nisso, quero deixar aqui esta seção fixa das edições gratuitas da newsletter para compartilhar relatos anônimos de situações profissionais nada profissionais, especialmente do mundo educacional, mas não somente.
Se você quiser compartilhar uma dessas situações, basta responder a este e-mail ou me procurar pelas redes sociais. Sua identidade será mantida no mais absoluto sigilo (me senti muito no Linha Direta agora haha).
🔖 Uma ideia traz outra…
| Textos de li em algum momento da vida e que me marcaram profundamente
“Entre os indígenas, não havia proibição ao registro, mas sim a crença de que o que você aprende com as coisas escritas não constitui sabedoria real. O verdadeiro conhecimento é passado de vida para a vida; ele só é contido na existência humana.”
Ariela K., em “Dos que falam e dos que calam”.
Penso no português com carinho, mas também com um pouco de raiva. É meu refúgio, minha primeira paixão, mas é uma língua que chegou na minha boca por um rastro de sangue.
Vanessa Guedes, em “Imigração: o silêncio da língua”.
Ainda por cima, sou de inventar aquelas metas incumpríveis que só servem para frustrar a gente depois — ver um filme por dia, ler um livro por mês, fazer exercício físico ao menos 3x na semana. Tudo bem não dar conta de tudo que a gente se propõe a fazer, mudar de rota no meio do caminho, tenho soprado em silêncio nos meus próprios ouvidos.
Mateus Habib, em “Mudança de ventos”.
Câmbio, desligo.
Linda news! Me emocionou demais!
Um beijo Dawton